Desmistificar a Afasia
“O meu familiar tem dificuldade em falar... Tem afasia?”
Não necessariamente.
O IPA recebe, frequentemente, vários pedidos de ajuda de pessoas com dificuldades em falar, mas que não têm afasia, pois esta condição é facilmente confundida com outros diagnósticos com consequências semelhantes.
Num mundo onde a desinformação é cada vez mais comum, é importante esclarecer o que é e o que não é afasia, de forma a que se possa encontrar a ajuda certa e os recursos mais adequados à situação de cada pessoa.
O que é a afasia, afinal?
A afasia resulta de uma lesão cerebral adquirida nas áreas cerebrais responsáveis pelo processamento de linguagem. Por isso, a afasia é uma perturbação da linguagem. Isto significa que a pessoa com afasia pode ter dificuldade em pensar e dizer as palavras certas, em compreender o que os outros lhe dizem, em escrever ou em ler. Devido a estas limitações, pode ser muito difícil comunicar sem as estratégias certas. (ASHA, n.d.).
A afasia pode surgir devido a um acidente cardio-vascular (AVC), um traumatismo crânio-encefálico (TCE), infecções ou tumores cerebrais, processos demenciais, entre outros (ASHA, n.d.).
Quando uma pessoa tem afasia, é comum dizer-se que a sua fala está afetada. Mas estará esta afirmação correta?
Muito simplificadamente, quando falamos, utilizamos a voz, assim como músculos orofaciais (lábios, língua…) para articular palavras (NIDCD, 2023).
Se voltarmos à definição de afasia, reparamos que é classificada como uma perturbação da linguagem, não da fala.
Também nem todas as pessoas que têm dificuldades de comunicação, têm afasia.
Vamos considerar e comparar diferentes condições clínicas, de forma a perceber em que se diferenciam da afasia.
Disartria
Quando uma pessoa tem uma lesão cerebral, usualmente, mais do que uma área do cérebro é afetada. Por exemplo, áreas responsáveis pelo funcionamento dos músculos orofaciais, da respiração e das pregas vocais poderão estar lesadas, o que poderá resultar numa disartria.
A disartria é então uma perturbação motora da fala (não de linguagem), caracterizada por dificuldades na articulação das palavras devido a problemas de controlo ou fraqueza nos músculos envolvidos na produção da fala. Esta condição pode resultar numa fala lentificada, monótona e impercetível (ASHA, n.d.).
A disartria pode surgir devido a um AVC, TCE, tumores e infeções cerebrais. Mas pode surgir também devido a doenças neurodegenerativas (como a doença de Parkinson, a Esclerose Lateral Amiotrófica, a Esclerose Múltipla), doenças do neurodesenvolvimento (como a Paralisia cerebral) ou doenças neuromusculares (como Miastenia gravis, distrofias musculares) (ASHA, n.d.).
Apraxia
A apraxia é uma perturbação neurológica, causada também devido a uma lesão cerebral (AVC, TCE, doença degenerativa…) e caracterizada pela incapacidade de realizar movimentos voluntários ou coordenar ações / sequências motoras, apesar de a pessoa ter o desejo e a capacidade física para executá-los. A apraxia não é causada por fraqueza muscular, falta de compreensão do que foi pedido à pessoa ou outras dificuldades de linguagem, mas sim por alteração na “comunicação” entre o cérebro e os músculos (ASHA, n.d.).
Existem diferentes tipos de apraxia, dependendo da área do corpo afetada e da natureza do movimento comprometido (Moin et al, 2023). Por exemplo, na apraxia da fala, existe a dificuldade em planear e executar os movimentos musculares necessários para falar, resultando numa fala lentificada, hesitante ou imprecisa (ASHA, n.d.).
Perturbações da Voz
Este tipo de perturbações ocorre quando a qualidade vocal, o tom e o volume da voz diferem ou são considerados inadequados para a idade, género, background cultural ou localização geográfica de um indivíduo (Aronson & Bless, 2009; Boone et al., 2010; Lee et al., 2004). Essas perturbações podem resultar numa voz rouca, fraca, tensa ou até mesmo na perda temporária ou permanente da voz, podendo então afetar as competências da fala e comunicação da pessoa.
As perturbações vocais podem ter diversas causas, como lesões nas pregas vocais (como nódulos, pólipos ou úlceras), inflamações ou infecções (como a laringite), doenças neurológicas (como a distonia laríngea ou a doença de Parkinson que podem afetar o controlo dos músculos da laringe, ou lesões cerebrais que resultem na paralisia das pregas vocais), refluxo gastroesofágico (por exemplo, o ácido pode irritar a laringe e as pregas vocais, com consequente alterações na qualidade da voz), laringectomia (que é um procedimento cirúrgico no qual a laringe, onde estão as pregas vocais, é parcial ou totalmente removida) e até causas psicogénicas (ASHA, n.d.).
Perturbações do Neurodesenvolvimento
A afasia e as perturbações do neurodesenvolvimento são condições neurológicas distintas, com causas e consequências diferentes. No entanto, devido às alterações na comunicação, fala e linguagem que podem surgir nas perturbações do neurodesenvolvimento, estas condições são também frequentemente confundidas.
Como referido, a afasia é uma perturbação da linguagem, causada por danos em áreas específicas do cérebro. A afasia é mais comum em adultos e idosos que já desenvolveram a linguagem, mas pode pode surgir em crianças e pessoas mais jovens. A afasia não afeta o desenvolvimento, mas sim a linguagem (e consequentemente a compreensão, a leitura, a escrita e o discurso) após um evento que danifica o cérebro.
Já as perturbações do neurodesenvolvimento são um grupo de condições que podem afetar o desenvolvimento típico do sistema nervoso central e periférico. Estas condições podem ter um impacto cognitivo, motor, comportamental e social, desde a infância ou adolescência. São geralmente causadas por fatores genéticos, anomalias cromossómicas, complicações durante a gravidez ou parto, ou exposição a substâncias tóxicas durante o desenvolvimento pré-natal. As perturbações do neurodesenvolvimento incluem: dificuldades de aprendizagem (como a Dislexia, Discalculia, Disgrafia); problemas de atenção e hiperatividade (como a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção), desafios na comunicação e socialização (como a Perturbação do Espetro do Autismo) e dificuldades motoras (como a Paralisia Cerebral) (Sherr, 2016).
De forma resumida, a afasia é especificamente uma perturbação da linguagem, enquanto que as perturbações do neurodesenvolvimento não se limitam a dificuldades na linguagem, fala ou comunicação, afetando vários domínios do desenvolvimento humano.
Mutismo Seletivo
O mutismo seletivo é uma perturbação da ansiedade social, caracterizado pela incapacidade de falar em determinadas situações sociais específicas, como na escola ou em público, apesar da criança ou adulto conseguirem falar normalmente noutros contextos sociais mais confortáveis, como em casa ou com pessoas próximas. Esta perturbação não se deve a uma lesão cerebral adquirida, nem a défices de linguagem, mas sim à ansiedade que impede a pessoa de usar a fala (ASHA, n.d.).
Conclusão
Existem inúmeras condições que poderão ter impacto na fala, na comunicação e na linguagem de um ser humano, adulto ou criança. No entanto, é importante salientar que a afasia é exclusivamente uma perturbação da linguagem (com impacto na comunicação), não uma perturbação motora ou simplesmente da fala, que resulta de uma lesão cerebral adquirida em áreas específicas do cérebro. É possível sim, surgirem vários diagnósticos diferentes após uma lesão cerebral. No entanto, é fundamental analisar as diferentes causas e consequências de cada um deles, com o profissional de saúde indicado. Quanto maior, mas também quanto mais concreto e fiável for o conhecimento que possuímos sobre a nossa condição, mais empoderadas serão as nossas escolhas sobre aquilo que queremos e necessitamos para uma vida com qualidade e bem-estar.
De uma forma resumida, na tabela abaixo podemos verificar as principais semelhanças e diferenças entre a afasia e outras condições clínicas explicitadas acima.
Referências:
American Speech-Language-Hearing Association (ASHA). (n.d.). Aphasia. https://www.asha.org/practice-portal/clinical-topics/aphasia/
American Speech-Language-Hearing Association (ASHA). (n.d). Apraxia of speech in adults. https://www.asha.org/public/speech/disorders/apraxia-of-speech-in-adults/
American Speech-Language-Hearing Association (ASHA). (n.d.). Dysarthria. https://www.asha.org/public/speech/disorders/dysarthria/
American Speech-Language-Hearing Association (ASHA). (n.d). Selective mutism. https://www.asha.org/practice-portal/clinical-topics/selective-mutism/
American Speech-Language-Hearing Association (ASHA). (n.d.-d). Voice disorders. https://www.asha.org/practice-portal/clinical-topics/voice-disorders/
Aronson, A. & Bless, D. (2009). Clinical voice disorders (4th ed.). Thieme.
Boone, D., McFarlane, S., Von Berg, S., & Zraick, R. (2010). The voice and voice therapy. Allyn & Bacon.
Lee, L., Stemple, J., Glaze, L., & Kelchner, L. (2004). Quick screen for voice and supplementary documents for identifying pediatric voice disorders. Language, Speech, and Hearing Services in Schools, 35(4), 308–319. https://doi.org/10.1044/0161-1461(2004/030)
Moini, J., Gutierrez, A., & Avgeropoulos, N. (2023). Function and dysfunction of the cerebral lobes. In Elsevier eBooks (pp. 133–152). https://doi.org/10.1016/b978-0-323-95901-8.00012-2
National Institute on Deafness and Other Communication Disorders (NIDCD) (2023) How does the human body produce voice and speech? https://www.nidcd.nih.gov/news/multimedia/how-does-human-body-produce-voice-and-speech-text-version#:~:text=When%20the%20air%20from%20the,are%20shaped%20to%20form%20speech.&text=When%20it’s%20time%20to%20speak,blows%20the%20vocal%20folds%20apart.
Sherr, E. (2016). Neurodevelopmental Disorders, Causes, and Consequences. In Elsevier eBooks (pp. 587–599). https://doi.org/10.1016/b978-0-12-800105-9.00036-6
- by IPA
- on 13 de Setembro, 2024
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